Catarina Bio e Matilde Ventura
Artigo originalmente publicado no Expresso.
Há poucos dias Henrique Monteiro, um homem na plenitude dos seus quase 70 anos, começa uma peça de opinião a chamar de “burras” a duas jovens de 19 e 20 anos.
Começamos no mesmo pé: existe uma “nova” profissão que se chama “comentador”, e alguns dos mais bafientos não hesitaram em sair de debaixo das suas pedras para comentar do lugar da bancada as ações tomadas pelos estudantes face à emergência climática. Inclusive, uns quantos sentiram-se finalmente à vontade para demonstrar o seu negacionismo em relação à gravidade das alterações climáticas, aproveitando a dica para distribuir insultos gratuitos ou, pior ainda, a falsa ideia de que as ativistas querem virar esta civilização ao contrário ao propor políticas que “nos condenam” (leia-se: o fim dos combustíveis fósseis, a indústria inegavelmente responsável pela crise em que vivemos).
Este debate torna-se mais interessante quando o colocamos à luz da História. São comuns os relatos do retrato do movimento das sufragistas como histéricas, desproporcionalmente zangadas, com comportamentos radicais e perigosos para toda a sociedade, e cujas propostas políticas iriam levar ao colapso da ordem moral e social. Faz lembrar algo?
Porque será, então, que se olha com apreço para as lutas do passado mas se condenam as do presente? Se tivessemos de adivinhar, apontaríamos sem dificuldade que, em todos estes comentadores – em particular aos que “burras” nos chamaram” – falta a visão para compreender que o momento histórico que estamos a atravessar é único e chave para resolver o maior desafio que a Humanidade alguma vez enfrentou. Aliás, arriscaríamos mais do que apenas visão: talvez falte também uma leitura atenta dos relatórios do IPCC sobre o estado da crise climática.
Acusam-nos de violência. Ora, violência é o facto de nós, e toda a nossa geração, termos nascido em crise climática sem qualquer perspectiva de futuro. Crescemos com o terror do colapso climático a pender sobre nós. Violência é o ministro estar a tentar limpar a imagem dos criminosos que nos estão a roubar o futuro, nosso e o de todas as pessoas.
Não, a Galp e a EDP não têm lugar à mesa de negociação. Em 2022, as empresas de combustíveis fósseis à escala global mais do que duplicaram os seus lucros, batendo todos os recordes – por cá, a Galp arrecadou uns vergonhosos 881 milhões de euros enquanto muitas famílias passavam escolhiam entre comer ou aquecer a casa. O que fez o governo, face a esta situação de evidente destruição climática e pobreza das pessoas? Nada, “vamos continuar”, como disse o Duarte Cordeiro depois de ser surpreendido com a ação que o responsabilizou pelos danos. A EDP, por sua vez, lucra à grande do aumento dos preços da eletricidade – que produz através de centrais movidas a gás fóssil – enquanto a sua imagem é lavada pelo suposto encerro da central a carvão de Sines, não seria, claro, o despedimento sem requalificação de centenas de trabalhadores e os planos para o miraculoso hidrogénio verde. Em suma, as empresas que estão a ser responsáveis pela distribuição não têm direitos, só deveres: o dever de redistribuir lucros, de reparar danos e de requalificar trabalhadores para empregos para o clima dignos.
Entretanto, a injustiça agrava-se e continuam a contar-se os mortos das cheias na Líbia, os desalojados dos incêndios na Grécia, e os danos das ondas de calor mortíferas – este foi o Julho mais quente de sempre. A recomendação do IPCC é que para ficarmos abaixo do limite planetário de 1.5ºC de aquecimento, o mundo precisa de cortar 50% das emissões até 2030. Em Portugal, isso significa um corte superior a 75% até 2030. A necessidade do fim dos combustíveis fósseis até ao final da década é inequívoco. Para conseguirmos concretizar a meta e garantir um futuro, temos de cancelar todos os novos projetos que envolvam mais emissões e começar já a transformar de forma sistémica toda a sociedade.
O governo continua a exibir os seus planos de “neutralidade carbónica” até 2045, novo gasoduto, novo aeroporto, e nenhum prazo para o fim aos combustíveis fósseis. Estão a jogar monopólio com milhões de vidas, vão a conferências e lançam os dados entre a casa da EDP e o condomínio da Galp, e esperavam poder continuar a fingir ter interesse na transição justa. Quando se a aperta a mão a CEOs da GALP e da EDP, é normal que apareçam nódoas na camisa.
Em suma: a casa arder, as empresas a lucrar e os ministros a passearem-se pelos green energy summits. No início, algumas de nós quiseram ter fé de que alguém resolveria o problema. Somos mais novas que as COPs. Antes de nascermos, os governos e as empresas já sabiam desta crise e reuniam para prometer que iriam fazer algo. Mas todos os anos as emissões aumentam. Já participámos em marchas com dezenas de milhares de pessoas, já assinámos petições, já falámos com representantes políticos e apresentámos planos. Nada disto resultou.
Estamos há décadas a repetir os mesmos métodos de protesto ou à espera que a “mão invisível” nos salve. O que nos garante que vão funcionar agora? A nossa única garantia é que, se não agirmos já, não teremos um futuro. Não ser mais assertivos é o mesmo que desistir. É o resto das nossas vidas que está em causa, não nos podemos dar ao luxo de ser ingénuas.
Por fim, para quem compara a nossa ação com os indivíduos de extrema-direita que interromperam a apresentação de um livro sobre a diversidade: pode ser bom começar distinguir entre um ataque a uma autora e editora de livros; versus a responsabilização de um ministro cujo cargo público é, supostamente, garantir que em princípio temos um planeta habitável.
Não vamos desistir até que o governo cumpra o seu dever e garanta o fim aos combustíveis fósseis até 2030 e eletricidade 100% renovável e acessível até 2025, duas medidas essenciais para o futuro de todas as pessoas. “Vozes de burro não chegam ao céu”, mas isso já deve saber Henrique Monteiro, aparente especialista em equinos.
Catarina Bio e Matilde Ventura